domingo, 24 de outubro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXX - FOME

 Obra-prima do escritor Norueguês, Knut Hamsun, o romance "Fome" escrito em 1890, influenciou sobremaneira as tendências da literatura do inicio do século XX.

Exemplar do Círculo do Livro, 1977
Adquiri este exemplar em 1977, quando então existia um clube de livros chamado Círculo do Livro S.A. Vejam que o que temos hoje como "assinatura" de vários serviços e produtos, já existia na década de 1970 para livros. Eu pagava uma mensalidade e todo mês recebia dois livros "surpresa".

Li "Fome" naquela época e lembro que fiquei extremamente impactado com o furor da fome. 44 anos depois, vendo que nada ou pouco mudou no mundo em relação à fome, resolvi reler o romance. Infelizmente a humilhação e a dor da fome assola, ainda, milhões de pessoas pelo mundo afora. 

Knut Hamsun ( 1859 - 1952), como Victor Hugo, conheceu desde a infância a miséria, a injustiça, a maldade e fez delas o tema constante em toda sua obra, a exemplo de Victor Hugo. Victor Hugo em seu clássico "Os miseráveis" retrata o desespero, a fome e a agonia de uma personagem que vendia seus dentes para ter algum dinheiro para comer. Knut Hamsun retrata os mesmos sentimentos de um personagem que não tendo mais nada para vender, oferecia seu óculos em troca de poucas moedas para comprar um pão.

Knut Hamsun

Genial em seus romances, Knut ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1920. Infelizmente sua escolha política pelo nazismo o levou à prisão ao fim da segunda guerra mundial. Por isso, embora toda sua genialidade, praticamente não existem homenagens a ele, na Noruega.

O romance "Fome" é muito impactante e ao mesmo tempo de uma simplicidade também impactante, pois retrata fatos corriqueiros do dia-a-dia do personagem protagonista. 

Hamsun nem nome deu ao protagonista de "Fome". Narrado sempre na primeira pessoa, o protagonista era um escritor que vendia artigos para o jornal da cidade (Jornal Morgenbladet, que existe até hoje na Noruega). Porém, isso nem sempre era possível, pois o jornal acabava recusando muitos artigos e com isso, não tinha dinheiro nem para comer.

A humilhação, o sofrimento e a fome era tanta que chegou ao extremo do escritor tentar vender os botões de seu único paletó para tentar algumas moedas para comprar comida. Não teve sucesso. E assim ele passava perambulando pela cidade para passar o tempo e tentar a busca de comida. Chegava ficar semanas sem comer nada, até algum artigo render poucas moedas.

Um dia o escritor precisava de uma vela para poder escrever à noite, mas não tinha dinheiro para comprar a vela. Foi até uma loja na esperança de conseguir a vela "fiado". Porém, para sua surpresa o atendente se enganou e achou que tinha recebido dele uma nota de 5$ e deu a vela e o troco para ele. Embaraçado e surpreso ele pegou o dinheiro e a vela e saiu. Começa então, uma tortura psicológica em seu inabalável caráter. Diz ele:

"Aquele dinheiro me pesava no bolso, não me deixava em paz. Investigando bem no fundo de mim, descobri que antes era mais feliz, quando sofria, porém com toda honestidade. Oh meu Deus!" Livrou-se em seguida do dinheiro doando a outro pobre.

A fome o perseguia diariamente. A miséria e a humilhação era uma constante em seus dias. Chegava muitas vezes a mascar gravetos encontrados na rua. Sua aparência era cada vez mais cadavérica. Possuía apenas uma muda de roupa e não tinha residência fixa. Morava um tempo em algum quarto alugado, porém não tinha dinheiro para pagar o aluguel e era mandado embora. Assim, aconteceu várias vezes.

O personagem sofre com os efeitos físicos e morais da subnutrição. A fome causa a loucura e empurra a pessoa à morte. Ultrapassa as fronteiras da sanidade.

Como sempre faço nos textos, não vou contar o final do romance. Só vou dizer que, praticamente, não tem final. A fome não tem fim.

Enfim, o livro é muito triste. A agonia que passa o protagonista traz uma grande perturbação ao leitor. Porém é uma leitura "obrigatória" na reflexão ao amor ao próximo. Essa maldição e humilhação chamada fome, que muitos de nós nunca passou deveria ser proibida no mundo. Não sei e não tenho a solução para o mundo. Mas sei que posso ajudar localmente a diminuir esse sofrimento de alguns.

É um livro que vale muito a leitura, pois não tem como ficar indiferente a esse "grito".

Professor Mario Mello

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXIX - TORTO ARADO

 Romance escrito em 2019, pelo jovem escritor brasileiro, Itamar Vieira Junior (1979-), "Torto Arado" conta a história de duas irmãs gêmeas que vivem numa fazenda no interior da Bahia, ainda em trabalho escravo.

Mesmo após a abolição da escravatura, muitas regiões brasileiras ainda mantiveram o trabalho escravo ainda por muitos anos.

Vencedor de vários prêmios recentes, "Torto Arado" é um romance que retrata, com muita habilidade narrativa, um Brasil dolorosamente encalhado no próprio passado escravagista. 

As protagonistas Bibiana e Belonísia (gêmeas) viveram com sua família, praticamente toda sua vida em uma fazenda. As regras "não-escravas" da fazenda eram as seguintes: não podiam construir nenhuma casa que não fosse de barro; não recebiam nenhum dinheiro pelo trabalho na fazenda; podiam ter uma horta para sua subsistência; e ainda, deviam doar alguma parte da colheita da horta para o capataz da fazenda.

A emocionante história começa quando em uma brincadeira de criança, Bibiana e Belonísia, ao mexer em uma mala de sua avó, acham uma velha e misteriosa faca.

Ocorre, então, um acidente com a faca e as meninas que acaba ligando ainda mais as duas irmãs. Com o passar do tempo essa ligação vai se desfazendo aos poucos. 

Na fazenda existem ritos de uma religião, de origem africana, que era comandada pelo pai das meninas e que é uma parte importante da história. Havia muitas reuniões com as pessoas da região para celebrar os atos religiosos. As meninas cresceram, viraram mulheres e uma nova etapa do romance aparece.

Pela influência do pai, Zeca Chapéu Grande, foi construída uma escola na fazenda o que determinou um novo ciclo de convivência com os trabalhadores da fazenda e de outras próximas. O sonho de Belonísia era ser professora. Ela cresceu, casou e mudou-se para a cidade onde pode ser professora.

Os ritos religiosos se sucedem na fazenda e os encontros vão diminuindo até que Zeca Chapéu Grande morre. Neste mesmo período a fazenda foi vendida para outros donos que fazem várias mudanças na rotina dos empregados. Tudo muda!!!

Na trama, brilhantemente conduzida pelo autor, quase sempre as mulheres são as protagonistas. O sofrimento das mulheres é comovente nesta triste história de uma época em que o Brasil dizia ter libertado a escravidão.

Enfim, é uma história cheia de Brasil que relata um tanto de insubordinação social, traumas familiares, exploração, misticismo afro-brasileiro, mas acima de tudo uma garra das protagonistas Bibiana e Belonísia na ânsia de viver.

É um belíssimo romance de uma leitura agradável, pela sua escrita, mas de uma enorme tristeza pelo sofrimento dos trabalhadores da época. As personagens são gigantes!!!!

Não deixe de ler. É um achado da literatura recente brasileira e um retrato de um Brasil ainda tão recente.

Professor Mario Mello


domingo, 10 de outubro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXVIII - A LIVRARIA MÁGICA DE PARIS

 "Ouvir em silêncio era a base para a avaliação profunda da alma". 

"As burrices do amor são as mais bonitas, mas se paga muito caro por elas".


Com frases desta qualidade o livro "A livraria Mágica de Paris" nos traz uma emocionante história de amor, aventura e desprendimento. Diria que ingredientes frequentes e costumeiros nos romances. 

Porém, neste livro, esses ingredientes se tornam inusitados pelas buscas e pelos pretextos dos protagonistas da história. É uma emocionante história de amor, de perda e do poder dos livros.

O livro, escrito por Nina George (1973-) é uma carta de amor aos livros e para quem acredita no poder que as histórias têm de influenciar nossas vidas.

Monsieur Perdu, o protagonista, se considera um "farmacêutico literário". Ele possui um barco-livraria, ancorado no Rio Sena, em Paris, de onde ele prescreve livros para as diversas dificuldades da vida, fazendo uma análise intuitiva de seus clientes.

Perdu utilizava os ouvidos, os olhos e o instinto. A partir de uma simples conversa, era capaz de identificar em uma alma o que lhe faltava.

Que incrível isso!! Já pensou? Em vez de remédios, livros?

E assim era Monsieur Perdu. Muitas vezes deixava de vender livros, pois não via ligação do livro com o "paciente". Monsieur Perdu vendia romances como se fossem remédios que amenizassem o sofrimento da alma. Porém, o único sofrimento que não conseguia curar era o seu.

Perdu sofreu uma desilusão amorosa há 21 anos quando seu amor, Manon, o abandonou quando dormia, deixando apenas uma carta. Carta essa, que Perdu não teve coragem de ler. A desilusão foi tão grande que somente após 21 anos Perdu leu a carta deixada por Manon. A leitura da carta foi provocada por uma nova vizinha, Catherine, que se mudou para o prédio onde Perdu morava e recebeu dele como ajuda para montar o apartamento uma velha mesa, onde na gaveta, estava a carta de Manon. Catherine "forçou" Monsieur Perdu ler a carta e então começa a louca aventura de Perdu.

Na verdade, Manon era amante de Perdu, pois era casada com Luc e morava na Provence, região francesa próxima do Mediterrâneo. Perdu sabia de Luc,  Luc sabia de Perdu e Manon dizia que amava os dois. O conteúdo da carta não vou aqui revelar, para não tirar a curiosidade de quem vai ler o livro. Posso dizer, apenas, que é chocante!

Roteiro de Monsieur Perdu

Numa bela manhã de verão Parisiense, Monsieur Perdu abandona Paris, desatraca seu barco do cais e parte para uma jornada que o levará para o coração da Provence em busca da história com seu amor Manon. Nesse movimento de partida, um jovem escritor e vizinho de Perdu, Max, intui o que está acontecendo e se joga no Sena para alcançar Perdu e partir junto. Assim, juntos partem sem dinheiro, sem roupas, sem muitos mantimentos, apenas em busca de "vida".

O que achei muito bacana no livro é que existe na contracapa um mapa do roteiro que Perdu faz com seu barco. É muito legal, pois o leitor vai acompanhado pelos vários rios e cidades onde o barco-livraria navega.

Nesta aventura da navegação Perdu e Max se tornam muito amigos e dependem um do outro. As conversas, silêncios e reflexões são muito divertidas, muitas vezes bem-humoradas e aprazíveis.

Numa das cidades, se metem em uma confusão num baile e encontram o italiano Cuneo. Cuneo era um espirituoso cozinheiro além de ser "boa gente". Como tiveram que sair às pressas da cidade, Cuneo se incorpora ao barco e parte junto com Perdu e Max. Na viagem encontram uma mulher supostamente se afogando no rio. Depois de algumas aventuras a mais, Samantha também se incorpora ao barco e parte junto. Cuneo se apaixona por Samantha e esta é outra história a parte na viagem. Mais tarde, descobrem que Samantha é também escritora, uma das preferidas de Perdu. Que história!!!!!

Passados alguns dias de viagem, chega o ponto de se separarem. Perdu e Max deixam o barco e partem de carro para Bonnieux, cidade onde Manon morava. Perdu não tem coragem de investigar mais sobre Manon e resolve morar um tempo em Sanary, famosa praia do Mediterrâneo, próxima a Toulon. Consegue emprego numa livraria e assim passa alguns meses na cidade. Porém, sua busca por Manon, não sai de sua cabeça. Um dia resolve encarar o retorna à Bonnieux para se encontrar com Luc o marido de Manon.

E assim é o epílogo da incrível história do "farmacêutico literário". Lá ele descobre Victória, uma linda jovem, filha de Manon. Neste epílogo ainda tem muitas aventuras para descobrir no livro.

Quem sabe, talvez todos nós tenhamos nossas tarefas no Grande Livro chamado La Vie.

Enfim, é uma história emocionante de amor, onde Perdu, compartilhando a sabedoria dos livros, demonstra que o mundo da literatura pode conduzir a alma humana pelo caminho da cura.

Dizia Monsieur Perdu:

 "Eu vendo livros como remédios. Existem livros que servem para um milhão de pessoas; outros para uma centena apenas. Há até remédios, perdão, livros que são escritos para uma única pessoa".

Salve salve sua majestade, LIVROS!!!!

Professor Mario Mello