domingo, 26 de setembro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXVII - A BONECA DE KOKOSCHKA

Do autor português Afonso Cruz (1971-) o livro "A boneca de Kokoschka" traz em seu enredo o que o autor faz questão de lembrar-nos a todo momento: "são os outros que nos fazem viver". 

A história começa na cidade de Dresden, localizada no leste da Alemanha, devastada pela segunda guerra mundial.

Dresden destruída pelo bombardeios
Dresden foi uma das cidades alemãs que mais recebeu bombardeios dos aliados na segunda guerra. Foram lançadas mais de 3.900 toneladas de bombas na cidade, destruindo-a, quase que totalmente. 

Neste cenário, Bonifaz Vogel, esconde na sua loja de pássaros o jovem judeu Isaac Dresner. Escondido num alçapão, Dresner se tornou uma voz misteriosa para Bonifaz, aconselhando-o sempre nos negócios de pássaros.

O livro além de ser um emocionante romance, ainda chama atenção por passagens muito reflexivas no nosso cotidiano. Uma delas, é quando Bonifaz Vogel, muitas vezes abria as portas das gaiolas, sem que os pássaros fugissem. 


Os pássaros ficavam encolhidos a um canto, tentando evitar olhar para aquela porta aberta, desviando os olhos da liberdade, que é uma das portas mais assustadoras. Só se sentiam livres dentro das gaiolas, ou seja, as gaiolas estavam dentro deles.

A partir daí, vão entrando em cena vários persongens, incluindo Mathias Popa, autor de "A boneca de Kokoschka". Já dá para perceber que temos um livro dentro de outro livro. Essa é uma característica marcante do autor Afonso Cruz, que possui uma maestria para colocar personagens dentro de personagens, como fez brilhantemente em outra obra sua chamada "Os livros que devoraram meu pai".

Um dos protagonistas, Mathias Popa, foi um grande músico e autor de outros livros. A outra protagonista Anasztázia Varga era uma milionária francesa que herdou do pai uma grande fortuna. O pai Zsigmond Varga tinha mais de 50 filhos, porém apenas 8 eram considerados legítimos e Anasztázia era a mais jovem. Os demais filhos de Zsigmond se perderam ao longo do tempo e da história, e apenas Anasztázia teve sua vida colocada no livro de Mathias Popa.

Anasztázia sempre fora muito caridosa e numa de suas viagens para a África, conheceu no navio o jovem Mathias Popa com quem teve um fulminante e inesquecível (até o final da história) romance. Anasztázia ficou grávida de Mathias, porém o mesmo desapareceu e nunca mais encontrou com ela.

A desilusão foi muito grande até seus últimos dias de vida. Já sem forças e acamada por anos, Anasztázia é cuidada pela neta Adele. Aqui, começa outra história dentro da história.

Nesse padecimento de Anasztázia diz o autor: "a horizontalidade (se referindo a sofrer deitada em uma cama) é um dos maiores sintomas da morte". Que pura verdade!!!

Adele vendo o sofrimento da avó parte em busca do paradeiro de seu avô. Ela não sabia nome, idade, cidade...nada sobre o avô. Com ajuda de um detetive encontra o judeu, Isaac Dresner, que vivia na loja de pássaros de Vogel e que conheceu Mathias Popa. O enredo é incrível e cheio de buscas do passado para ajudar Adele a desvendar o mistério.


Quando Adele consegue um exemplar do livro "A boneca de Kokoschka" tudo começa a ficar muito claro.

Assombrosas coincidências onde a realidade se confunde com a ficção, fazem de Adele outra protagonista da história, dentro da história de Mathias Popa. 

Essa é uma das grandes virtudes do autor Afonso Cruz. Ele não se limita a contar fatos. Nos traz uma espécie de leituras paralelas, ou seja, lemos um livro, dentro de outro livro, dentro de outro livro, até nos perguntarmos, mas afinal qual livro estava lendo? É uma sensação extraordinária num mundo feito de acasos e fatos reais. 

Assim se desenvolve esta fabulosa história cheia de nuances muito reais.

O último capítulo chamado "O fim" é de uma talentosa criatividade. Não vou obviamente contar aqui, mas a última frase do livro é de arrepiar. Não tem como não se emocionar com esta frase.

Não deixe de ler este livro. É admirável!!!!

Professor Mario Mello


sábado, 11 de setembro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXVI - EL TÚNEL

 Disponível no Brasil apenas na versão em espanhol (muito bom para treinar o segundo idioma), o livro "El túnel" do renomado escritor argentino Ernesto Sábato é uma das grandes novelas da literatura sul-americana.

Escrevi, aqui mesmo no Blog, no mês de abril/21 sobre Ernesto Sábato. Fiz um relato sobre sua vida, descrita na obra "Antes del fin". Este livro conta toda trajetória de Sábato, desde a infância, sua militância comunista, sua atuação como professor universitário, até largar tudo e se tornar um escritor.

Escrito em 1948, "El túnel" repercutiu também na Europa onde escritores famosos como Graham Greene e Albert Camus manifestaram sua admiração pelo livro. Graham Greene disse: "Tenho grande admiração por "El túnel" por sua magnífica análise psicológica. Não posso dizer que o li com prazer, mas sim com absoluta absorção."

O livro é tão esplêndido que sorve o leitor até a última linha da história (o último parágrafo reli várias vezes).

Os protagonistas, o pintor e artista Juan Pablo Castel e Maria Iribarne vivem a trama de uma tragédia anunciada. Tudo começa numa exposição das obras de Juan Pablo, quando ele percebe uma dama que fica muito tempo sozinha observando uma de suas obras. Isso o impressionou demais com a contemplação diferente daquela mulher em sua obra.

"La ventanita"
A obra é uma mulher aparecendo em uma janela para o mar, "La ventanita" (a janelinha).

A partir daí, começa uma busca desenfreada de Juan Pablo para encontrar Maria. Depois de muita busca, Juan Pablo a encontra e começa, então, o desenrolar de um episódio entre o real e a ficção envolvendo a história dos protagonistas imersos na dramática trama.

Os encontros começam a acontecer, porém Juan Pablo, enlouquecido pela paixão, submete Maria a inúmeras e incansáveis perguntas em todo encontro. A tortura psicológica se manifesta de forma brutal e desequilibrada. A cada encontro um diálogo tóxico que deixa Maria cada vez mais arredia. De personalidades completamente opostas, Juan Pablo desequilibrado psicologicamente, enquanto Maria se mantinha sempre calma e comedida, mesmo com todas agressões verbais sofridas.

Um dia Juan Pablo descobre que Maria era casada com um cego e que tinha uma propriedade fora de Buenos Aires, onde a história de desenvolve. Para fugir dos ataques desatinados de Juan Pablo, muitas vezes Maria se refugiava na estância. Aloucado Juan Pablo inferia que Maria tinha um amante na estância e por isso lá ela passava dias. Isso foi enlouquecendo cada vez mais Juan Pablo e calando Maria.

Uma das passagens do livro neste episódio: "Pelo ella no volvia. A medida que fueron pasando los dias, cresci en mí una espécie de locura."

"Mis sentimientos, durante todo ese período, oscilaron entre el amor más puro y el odio más desenfrenado, ante las contradiciones y las inesplicables actitudes de Maria; de pronto me acometía la duda de que todo era fingido."

Entre os diálogos de Juan Pablo com Maria, a maioria das vezes era assim: "Si alguna vez sospecho que me has engañado - le decia com rabia - te mataré como a un perro."

A pressão psicológica, estúpida e demente que Juan Pablo impunha a Maria durante toda a história, é como disse Graham Greene sobre o livro: não dá prazer em "presenciar" as atrocidades de Juan Pablo, porém nos absorve de tal forma que é impossível parar a leitura.

Assim, a novela se desenrola até o fim com a psicologia introspectiva e egoísta de Juan Pablo. A desesperança se agravava a cada atitude insana de Juan Pablo.

Durante toda obra Juan Pablo luta com duas forças antípodas: a razão e a intuição. Sua força racionalista culmina em uma sequência absurda de hipóteses que o conduzem para a necessidade de matar Maria, para referendar sua posição de domínio.

Em "El túnel", Sábato nos manifesta através da consciência de Juan Pablo que não há esperanças, que é impossível alcançar o amor absoluto. É um livro intrigante e muito real.

Vou dar um pequeno spoiler do final. Disse Juan Pablo: 

"Soló existió un ser que entendía mi pintura"


Professor Mario Mello

terça-feira, 7 de setembro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXV - OS LIVROS QUE DEVORARAM MEU PAI

Surpreendente!

Inesperado!

Extraordinário!

Extranatural!

Resolvi começar o texto com adjetivos que fui buscar no dicionário para descrever o que achei deste livro.

"Os livros que devoraram meu pai" me chamou tanto a atenção pela genialidade que precisei ir ao dicionário para buscar palavras para descrever parte dos meus sentimentos antes (pelo nome), durante e após a leitura.

Afonso Cruz
Multipremiado autor de romances, Afonso Cruz (1971- ) português de Figueira da Foz, mostrou toda sua magistralidade como escritor.

O protagonista Elias Bonfim perdeu o pai ainda antes de nascer. O pai, Vivaldo Bonfim, era um leitor voraz. Levava livros e mais livros escondidos ao trabalho para ler durante o dia todo. Até que um dia ele desapareceu. De tão entretido, de tão concentrado na leitura, adentrou um livro e desapareceu.

Quando Elias completou 12 anos a avó dele o chamou para uma conversa e lhe deu a chave do sótão, como herança, onde ficava a enorme biblioteca do pai. E aí, meus caros, começa a "viagem".


Elias na ânsia de encontrar seu pai, começa uma maratona de leituras, na busca de uma pista para encontrar o pai. Elias começa sua aventura pelos grandes clássicos, percorrendo obras repletas de assassinos, paixões devastadoras, feras e outros perigos feitos de letras.

Elias começou a "entrar" nos livros.

A primeira pista de Elias é o livro "A ilha do Dr. Moreau", que foi o último livro que seu pai leu, antes de desaparecer, pois o pai costumava deixar anotações nos livros.

Obras como a "Odisséia", "O médico e o monstro", "A divina comédia", "Crime e Castigo", "A revolução dos bichos", entre outras são percorridas por Elias onde ele trava diálogos com os personagens na incessante busca pelo paradeiro de seu pai.

Elias é apaixonado por Beatriz, colega de colégio, porém não era correspondido, pois Beatriz gostava de um amigo seu, Bombo. Aqui também acontece a convergência com a obra de Dante, "A divina comédia"que também tinha a Beatriz como a mulher a ser amada.

Em certa ocasião a mãe de Elias deixou-o de castigo porque ele sempre se atrasava para o jantar, por conta das intermináveis leituras. Neste episódio, Elias diz à mãe que irá fazer como o "Barão nas árvores" livro de Italo Calvino, cujo personagem foi morar em árvores após um desentendimento com o pai. E assim vai a história com Elias adentrando nos livros, conversando com os personagens na busca de pistas de seu pai.

São muitos diálogos e passagens por vários livros que não cabem neste pequeno texto. Um dos pontos chaves da história é quando Elias encontra Raskolnikov. Emblemático personagem assassino do romance "Crime e Castigo" de Dostóievski. Raskolnikov conheceu seu pai Vivaldo Bonfim e dele só tinha boas lembranças. O frio assassino se comove com a história de Elias, chora e diz:


"As pessoas tornam-se livros. Esses livros são verdadeiramente vivos. E isso foi minha salvação. Seguindo conselho de seu pai, decorei o livro "Crime e Castigo" de Dostóievski, não com o intuito de contá-lo tal qual foi escrito, mas, acima de tudo entendê-lo. Isso significaria entender-me".

Inteligentíssimo, isso. Muito criativo.

Mas, enfim, será que o jovem Elias encontrará seu pai?

Que pistas "A Divina Comédia", "O médico e o monstro", "Crime e Castigo" darão a Elias para resgatar seu pai?

Só posso dizer o seguinte (que já disse de outros livros): "Os livros que devoraram meu pai" é um dos melhores, mais inteligentes, criativos e formidáveis de todos os livros que já li.

Professor Mario Mello

segunda-feira, 6 de setembro de 2021

O LIVRO SUA MAJESTADE LXXIV - OS SETE ENFORCADOS

A décima novela que li, das dez "Novelas Imortais", organizadas pelo escritor Fernando Sabino, chama-se "Os sete enforcados". 


Escrita por Leonid Andreiev (1871-1919), um dos mais importantes autores de contos da 
literatura russa, também foi um dos mais emblemáticos escritores pessimistas. Sua obra literária é povoada de infelizes personagens que inspiram compaixão. 

Leonid Andreiev

Os sete enforcados é uma trama sobre homens e mulheres presos, à espera do fim iminente - da morte!

Andreiev discute na novela o sentido da vida a partir da prisão, e, muito mais que isso, a dúvida sobre a legitimidade da pena de morte.

A novela conta a rápida trajetória de sete condenados ao enforcamento, que vão para uma prisão de segurança máxima para aguardar a temida hora da execução. 

Desses sete condenados, cinco são jovens ativistas que planejaram a morte de um ministro. Foram delatados por alguém e assim impedidos de praticar o atentado sendo presos, julgados e condenados. Dos outros dois condenados um era um ladrão e outro um assassino confesso.

Colocados na prisão, em celas individuais, aguardavam angustiados e torturados psicologicamente (por eles mesmos) à espera da morte. Em uma passagem da novela, uma dos condenados reflete:

"Nunca pensara na morte, e não fazia dela uma imagem clara - mas agora percebia-a nitidamente; via-a, sentia que ela penetrara na cela e tateava à procura dele. Para salvar-se, pôs-se a correr pela cela exígua, enlouquecido."

Com doses perfeitas de realismo o autor mostra as incertezas e inseguranças do homem diante do anunciado fim. Dia e noite o único som ouvido nas celas era de um relógio que badalava seu sino de 15 em 15 minutos com toques longos e melancólicos. Isso provocava um tormento sem fim nos condenados.
Enfim, uma noite chegou a hora de partir da prisão para o enforcamento. Novas angústias e tormentos se apossaram dos condenados. O personagem principal era a morte.

Quero finalizar dizendo que ao ler a última das dez novelas que Fernando Sabino, com maestria selecionou na literatura mundial, fico com a sensação de que esta foi a melhor. Mas já tinha falado isso antes sobre outras das novelas. Não sei......
Só sei que é uma leitura imperdível para conhecer as fraquezas humanas e o suplício no aguardo da morte.
Surpreendente, excepcional, admirável!!!!

Professor Mario Mello