Do autor português Afonso Cruz (1971-) o livro "A boneca de Kokoschka" traz em seu enredo o que o autor faz questão de lembrar-nos a todo momento: "são os outros que nos fazem viver".
A história começa na cidade de Dresden, localizada no leste da Alemanha, devastada pela segunda guerra mundial.
Dresden destruída pelo bombardeios |
Neste cenário, Bonifaz Vogel, esconde na sua loja de pássaros o jovem judeu Isaac Dresner. Escondido num alçapão, Dresner se tornou uma voz misteriosa para Bonifaz, aconselhando-o sempre nos negócios de pássaros.
O livro além de ser um emocionante romance, ainda chama atenção por passagens muito reflexivas no nosso cotidiano. Uma delas, é quando Bonifaz Vogel, muitas vezes abria as portas das gaiolas, sem que os pássaros fugissem.
Os pássaros ficavam encolhidos a um canto, tentando evitar olhar para aquela porta aberta, desviando os olhos da liberdade, que é uma das portas mais assustadoras. Só se sentiam livres dentro das gaiolas, ou seja, as gaiolas estavam dentro deles.
A partir daí, vão entrando em cena vários persongens, incluindo Mathias Popa, autor de "A boneca de Kokoschka". Já dá para perceber que temos um livro dentro de outro livro. Essa é uma característica marcante do autor Afonso Cruz, que possui uma maestria para colocar personagens dentro de personagens, como fez brilhantemente em outra obra sua chamada "Os livros que devoraram meu pai".
Um dos protagonistas, Mathias Popa, foi um grande músico e autor de outros livros. A outra protagonista Anasztázia Varga era uma milionária francesa que herdou do pai uma grande fortuna. O pai Zsigmond Varga tinha mais de 50 filhos, porém apenas 8 eram considerados legítimos e Anasztázia era a mais jovem. Os demais filhos de Zsigmond se perderam ao longo do tempo e da história, e apenas Anasztázia teve sua vida colocada no livro de Mathias Popa.Anasztázia sempre fora muito caridosa e numa de suas viagens para a África, conheceu no navio o jovem Mathias Popa com quem teve um fulminante e inesquecível (até o final da história) romance. Anasztázia ficou grávida de Mathias, porém o mesmo desapareceu e nunca mais encontrou com ela.
A desilusão foi muito grande até seus últimos dias de vida. Já sem forças e acamada por anos, Anasztázia é cuidada pela neta Adele. Aqui, começa outra história dentro da história.
Nesse padecimento de Anasztázia diz o autor: "a horizontalidade (se referindo a sofrer deitada em uma cama) é um dos maiores sintomas da morte". Que pura verdade!!!
Adele vendo o sofrimento da avó parte em busca do paradeiro de seu avô. Ela não sabia nome, idade, cidade...nada sobre o avô. Com ajuda de um detetive encontra o judeu, Isaac Dresner, que vivia na loja de pássaros de Vogel e que conheceu Mathias Popa. O enredo é incrível e cheio de buscas do passado para ajudar Adele a desvendar o mistério.
Quando Adele consegue um exemplar do livro "A boneca de Kokoschka" tudo começa a ficar muito claro.
Assombrosas coincidências onde a realidade se confunde com a ficção, fazem de Adele outra protagonista da história, dentro da história de Mathias Popa.
Essa é uma das grandes virtudes do autor Afonso Cruz. Ele não se limita a contar fatos. Nos traz uma espécie de leituras paralelas, ou seja, lemos um livro, dentro de outro livro, dentro de outro livro, até nos perguntarmos, mas afinal qual livro estava lendo? É uma sensação extraordinária num mundo feito de acasos e fatos reais.
Assim se desenvolve esta fabulosa história cheia de nuances muito reais.
O último capítulo chamado "O fim" é de uma talentosa criatividade. Não vou obviamente contar aqui, mas a última frase do livro é de arrepiar. Não tem como não se emocionar com esta frase.
Não deixe de ler este livro. É admirável!!!!
Professor Mario Mello